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Crônica de um desesperado



By  Coletivo Poesia Marginal     12:04:00    Marcadores: 


          Já eram quase nove horas da noite quando terminei de me trocar e pude enfim subir ao topo do meu prédio e começar a saltar telhados em direção ao pequeno ginásio no extremo norte de Charlote. Em outros tempos, eu costumava ir de mãos dadas com meu pai, pelas ruas, ver meus heróis. Infelizmente, andar pelas ruas atualmente aquela hora era um luxo que apenas os donos de carros blindados e aqueles que não temiam a lei podiam se dar. As ruas pertenciam ao mais forte, atualmente, e ainda mais vestindo minha máscara, não era uma boa ideia caminhar por ali.
          Nos últimos meses, eu vinha causando problemas especialmente para a gangue que dominava os arredores do parque Flair. Minha parceira, Black Lotus morava na região, e fazíamos rondas cruzadas. Ela protegia os arredores do meu prédio, e eu protegia o parque em que seus filhos brincavam pela manhã. Era uma forma de ficarmos um pouco mais seguros. Sempre existia o risco de morrermos durante uma briga frente a algum marginal, e de fato alguns de nós morreram, mas assim não morríamos em emboscadas durante o dia. Nenhum daqueles marginais eram inteligentes o suficiente para nos procurar longe de nossos territórios.
          Talvez isso esteja parecendo uma história em quadrinhos, mas não é. Não somos super heróis, e não temos super uniformes, muito menos lutamos contra super vilões. A única real função de nossos trajes é esconder a identidade secreta do coitado que o vestia. Sim, coitado. Nós e aqueles que combatemos. Pessoas que foram abandonadas pela lei, e decidiram suplanta-la. A maioria de nós, guardiões mascarados, podíamos ser enquadrados em tantos artigos quanto aqueles que combatíamos. Para alguns, assassinato havia virado rotina. O que nos diferenciava deles? Bom, não atacávamos velhinhas indefesas. O quanto isso nos diferenciava? As vezes eu achava que muito. Outras fingia que muito. O fato é que eu precisava seguir. Isso não é a história de um super herói, é a crônica de um desesperado.
          Bem perto do velho ginásio, me perguntava se a Srª Carter havia chegado bem em casa. Ela tinha mania de caminhar tarde. Em geral eu a observava a achar o caminho para casa. Hoje eu só podia torcer para que tivesse achado o caminho de casa antes que alguma faca achasse o caminho para a garganta dela. Ela tinha a única mania pior que andar tarde com dinheiro em Charlote, andar tarde sem dinheiro em Charlote.
           Hoje eu não a estava vigiando por um motivo simples, eu estava em uma missão de recrutamento. Era a forma que alguns de nós chegamos nos telhado da cidade: alguém nos sugeria vestir uma máscara e defender os indefesos. Aqueles que fossem estúpidos o suficiente, aceitavam. Como eu. E agora era minha vez. Eu não fazia a menor ideia do nome de quem eu pretendia recrutar, e ele já estava acostumado a usar uma máscara e levar porrada, o que eram pontos muito positivos. Se você ainda não entendeu que ele é um wrestler, só posso lamentar pela sua infância.
           Era o mesmo homem que eu costumava vir ver com meu pai, embora agora eu tivesse vindo sozinho. É, as coisas mudaram bastante. Passei pela região em que havia visto meu pai pela ultima vez, envolto em uma poça do sangue dele do guardião que falhará em salva-lo. As gangues erma duplamente a razão de eu não poder mais andar nas ruas com meu pai.
            Confesso que foi bom poder ser visto no ginásio, e vê-lo lutar novamente. Sua força e agilidade eram impressionantes. Não impressionantes para um cara daquela idade e peso, simplesmente impressionantes. Eu não seria capaz de voar como ele voava. Depois foi a hora de me esconder novamente, e me esgueirar para o camarim. Eu não era mais criança para poder entrar ali para pedir um autografo.
             Esperei algum tempo, mas não o suficiente para que ele tirasse a máscara. É até engraçado quando se pensa, um homem adulto e acostumado a ver cenas grotescas todas as noites, não aceitava a ideia de ver o rosto do seu ídolo. Um longo suspiro anunciou minha presença, antes de eu verbalizar alguma coisa:
             
             - Impresionante, Valentim.

              Ele esboçou um sorriso com o elogio, enquanto me lançava um demorado olhar. Por fim, sentou na cadeira e agradeceu o elogio:

              - Obrigado, Víbora. - A surpresa deve ter sido nítida através da minha máscara, porque ele se apresou a explicar - Você não sai dos jornais, garoto. Você tem feito um bom trabalho no Flairs. Confesso que estou tão surpreso quanto você. O que um guardião pode querer com um velho como eu?

             - Um guardião pode querer muita coisa com um velho que consegue voar mais alto que ele... - Ao ouvir isso, Valentim soltou um pequeno sorriso. Eu sabia o que viria a seguir. Valentim era muito bom no ringue, mas era no microfone que ele ganhava a todos - E a cidade também.

              - Escuta, Víbora... Você me honrou muito vindo aqui, elogiando minha performance e me chamando para ser um de você. Eu poderia dizer que foi a maior honra da minha carreira, se minha maior honra não fosse assinar máscaras de crianças como você foi um dia, Franky. - Por trás da máscara, senti uma lágrima escorrer. Como algo quebrando, dentro de mim. Fazia mais de 20 anos que ele havia assinado a máscara que hoje eu usava para patrulhar as ruas, mas ele ainda lembrava - Talvez eu ainda seja seu herói, Víbora, mas eu sou quem sou entre as 12 cordas. Eu sou quem faz aquelas crianças forçarem seus pais a saírem de casa essa hora. Quem dá esperança para elas, quem as faz acreditar em si próprias. Mas eu não sou o cara que garante que elas voltem inteiras para casa. Esse é você. Eu talvez ainda seja seu herói dentro daquelas doze cordas, mas fora delas... Você é o meu herói, Franky.

              Foi difícil verbalizar as primeiras palavras frente a aquele homem, mas depois daquilo falar seria completamente impossível. Eu simplesmente o fitava, incrédulo. Para seguir naquela vida o truque sempre havia sido não pensar, mas essa noite... Era impossivel.

              - Eu preciso voltar. Você sabe, Drago não vai perder a luta sozinho. Você consegue acreditar? Dez anos e ainda estamos rivalizando.  Fique a vontade se quiser. Bom te ver, Franky.

               Eu o vi se levantar da cadeira, ajustar a máscara e sair para o palco. Eu queria tê-lo acompanhado, visto novamente ele encher o Drago de porrada. Mas eu precisava garantir que, aquela noite, criança nenhuma encontraria seu pai deitado em seu próprio sangue.


Um comentário:

  1. Oie, como vai?! Te indiquei ao Mystery Blogger Award. Se você quiser e tiver um tempinho, dá um pulo lá: https://prateleiradevidro.wordpress.com/2017/06/13/tag-mystery-blogger-award/#more-4785 Abraços :))

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