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A HISTÓRIA, O MITO E A FICÇÃO NA LITERATURA MARGINAL



By  Coletivo Poesia Marginal     16:12:00    Marcadores: 




A faculdade me trouxe muita coisa. E não falo só de ansiedade, inicio de depressão, trabalhos enormes cuja única razão para fazer é a nota, falo também de conhecimento. Por exemplo, aprendi que os modernistas resenhavam os escritos uns dos outros, porquê se não nenhum outro faria. Não é novidade não se interessar no novo, ainda mais quando o novo é pobre, preto, não é hétero, não é homem, tem práticas pouco ortodoxas na cama ou no altar... Quando o novo é marginal.

Eu lembrei disso por algo recente. Uma pessoa, que conheço desde os áureos tempos da sétima série, em sua faculdade de jornalismo, precisava entrevistar um escritor para um trabalho. Era em grupo, o grupo dele se enrolou e acabaram perdendo o que iam entrevistar, e ele acabou não entregando. E ele contou isso esses dias para esse humilde escritor que vos fala.

A justificativa dele faz sentido, ele não lê o que eu, ou um dos autores editados por mim, escrevem. O desconhecimento do nosso trabalho causaria uma entrevista porca, com perguntas padrões. Faz sentido, eu não sirvo para ser entrevistado para um trabalho acadêmico porque, em 9 anos, nunca servi para ser lido. Naturalmente, eu discordo, do contrário não insistiria. E é por discordar, que vos apresento "A HISTÓRIA, O MITO E A FICÇÃO NA LITERATURA MARGINAL", trabalho meu que usa como base meu texto. Agradeço ao amigo Diego Servilha por ceder seu nome para evitar discussões éticas. Nóis por nóis.



A HISTÓRIA, O MITO E A FICÇÃO NA LITERATURA MARGINAL

“Eu só mais um
Forrest Gump é mato
Eu prefiro conta uma história real
Vô conta a minha

Daria um filme
Uma negra
E uma criança nos braços
Solitária na floresta
De concreto e aço”

(Nego Drama - Racionais MC's)

Diego Vaz Servilha, auto-definido como preto, pobre cafajeste e suburbano, em uma clara referência a seu ídolo Tim Maia, é um dos escritores pouco populares até mesmo na esfera marginal da literatura. Membro do Coletivo Poesia Marginal, conjunto de autores que possuem cerca de 13 mil seguidores nas mídias sociais, possui alguns trabalhos lá publicados, todos sucesso de público, para os padrões do Coletivo.
Um desses trabalhos, “Mais um” será nosso objeto de análise. Presente em anexo, nosso corpus se trata de uma crônica, passada em ambiente urbano. O mote, mais que cotidiano, o assassinato de um garoto envolvido com tráfico por um de seus clientes e as consequências disso na quebrada onde ele morava.
Esse trabalho será analisado enquanto exemplar de literatura marginal.  Na tese de mestrado ““Literatura marginal” : os escritores da periferia entram em cena”, escrita por Érica Peçanha do Nascimento encontramos uma extensa lista de definições de literatura marginal, bem como a conclusão de que, ao longo do tempo, o termo foi se tornando muito amplo, acolhendo diversos tipos de obras. Dessa forma, para enquadrar o texto como literatura marginal não procuraremos uma definição específica, mas mostrar suas características que se encontram em algumas delas.
Essas características são, primeiramente, a vivência de periferia do autor, bem como o fato de pertencer à minoria social (pobre) e étnica (preto). Sua escrita é divulgada distante da grande mídia, além de se caracterizar por ser feita em conjunto com outros autores com vivências semelhantes.
            Usaremos como base para essa análise o texto “DESAFIOS DE LEITURA NUMA AULA DE LITERATURA ENTRE A HISTÓRIA, O MITO E A FICÇÃO” de Luis Fernando Prado Telles. Esse texto teórico visa demonstrar os comos e os porquês de os mitos são retomados através dos séculos, tomando por exemplo o de Inês de Castro e D. Pedro.
“Com esta referência, o caso da personagem protagonista é lançado ao campo de significação do mito e, com isso, demanda do leitor o agenciamento dos significados desse mito.”(TELLES, 2014, p. 2)
Essa citação versa sobre o exemplo original no qual, diferente do nosso corpus, o protagonista é a principal referência do mito. No nosso caso, sem esquecer que o nome escolhido para a protagonista, Ana, é o mesmo da avó de Jesus, nós demonstraremos que um personagem secundário possui uma referência que nos leva a pesquisa dos significados desse mito.
Pôncio Pilatos moderno é a alcunha utilizada para um dos personagens da crônica, o assassino do garoto. Essa referência, que num primeiro olhar parece singela, é uma alusão a Corte de Pilatos, evento bíblico onde Jesus Cristo teria sido condenado à morte por crucificação, sentença proferida por Pôncio Pilatos, mediante ao clamor do público incentivado pelos sacerdotes. O episódio, presente nos evangelhos de Lucas, Marcos, João e Mateus, lidos para essa análise, possui algumas discrepâncias de um texto para o outro, sendo a mais relevante delas a lavagem das mãos, literal, por parte de Pilatos, durante a condenação.
Sendo um mito com base na tradição religiosa cristã, trata-se de uma história extremamente popular, recuperada inúmeras vezes pelos mais diversos escritores, bem como no dia-a-dia, no que tange ao Brasil, já que a origem da expressão “Lavo minhas mãos”, amplamente utilizada no quando se exime da responsabilidade por algo, ainda que saiba se tratar de um erro, tem origem ai.
Essa ampla intertextualidade faz com que, muitas vezes, trate-se apenas de uma repetição literária, uma mera citação. O intuito dessa análise é demonstrar em que medida esse não é o caso do corpus selecionado, de forma a verificar as ferramentas que a literatura marginal tem a sua disposição para reatualizar mitos.
Cabe aqui citar que a existência de quatro versões do mito original, bem como as inúmeras citações, referências, reatualizações (cada uma carregando devidamente as marcas de seu tempo, mudanças de forma e significado), bem como a utilização da expressão no dia fazem com que a busca pelo significado original do mito, como alerta Telles, seja um trabalho talvez impossível.
Além disso, Telles também demonstra que não é uma questão fundamental para a literatura, bem como as bases reais que gerarão o mito, uma vez que sua capacidade de ser recuperado ao longo dos anos e mudar de forma é o que lhe sustenta historicamente. Por esses motivos e pelo caráter breve desse ensaio, não nos atentaremos a esses pontos, focando na forma como o mito é recuperado por Servilha.
Esses pontos que citamos podem ser vistos no seguinte trecho:

O arguto leitor também já deve ter notado que a história, em sendo uma construção textual, carrega consigo as marcas de seu tempo e faz revelar os pontos de vista e interesses (explícitos ou implícitos) daqueles que as enformam. Deve ter pensado o nosso inteligente leitor que o fato de não ser possível recuperar um sentido original de uma história ou de um mito não deve ser motivo de desespero, muito menos significa que os sentidos que podem ser depreendidos das várias interpretações ou apropriações da história não possam ser válidos, ou tenham de ser desconsiderados por não serem portadores de uma verdade original. O nosso leitor descobrirá, pelo contrário, que a riqueza do mito do amor de Pedro e Inês reside justamente na capacidade de ser reatualizado, ao longo do tempo, ou seja, de permanecer na medida em que é reinterpretado. (TELLES, 2014, p. 9)

Alguns pontos em comum com esse evento são encontrados no corpus, primeiro abordaremos o tumulto do povo, tratado no segundo parágrafo por “zoada”, e descrito mais detalhadamente no último:

O céu coberto da fumaça. Pneus, ônibus, mas bem podiam ser corpos, tão podre era o cheiro. Tão podre era a fumaça, tão densa. Parecia que nunca mais ia sumir. Cada cochilo um pesadelo. Era a condenação que sofria sempre que matavam alguém. A condenação que sofria sempre. (SERVILHA, 2016)

Uma característica da reatulização dos mitos, segundo Telles, é a ressignificação por meio da mudança em meio ao que permanece.  Aqui vemos que o tumulto, no mito original, a causa da morte de Jesus, aqui é causado pela morte do garoto. É possível observar também que, da mesma forma que os que crucificam Jesus necessitam de perdão, por não saber o que fazem, os que promovem ou se encontram em meio a zoada ficam em um ambiente parecido com o inferno. Incapazes de ver o sol, devido a uma fumaça escura e densa, de odor descrito como podre, com aparência de eterna, o ambiente é descrito como uma condenação, onde o descanso é negado, através dos pesadelos.

Primeiro os tiros, pelo menos cinco. Pra ter certeza que o arquivo tava queimado igual os becks vendidos pro seu assassino, que no outro dia ia dizer "Ele procurou", Pôncio Pilatos moderno, lavando a mão, em sangue, pra não perder o costume.

Já esse trecho, traz um número muito maior de referências. Primeiro, a citação direta a Pôncio Pilatos, já comentada. Novamente, existe a mudança, enquanto no mito original é apenas o autor da sentença, aqui é também o executor, dando cinco tiros na vítima, uma clara referência as cinco chagas de Cristo. 
O texto não nos dá de forma direta mais características do executor, mas as deixa implícitas. Como já citado, um dos temas da literatura marginal, que se encontra nesse texto, é o dia-a-dia do ambiente urbano periférico. Esse tipo de crime, comum nas periferias, tem por culpados, em geral, ou policiais militares ou traficantes. O autor, ao dizer que o assassino havia comprado becks (gíria para cigarros de maconha), exclui a segunda hipótese de forma a demonstrar, veladamente, que se trata de um policial. Mantém-se a característica de ser um membro do estado, muda-se a patente.
A temática ainda pode nos oferecer o fato de a ação, apesar de amparada pelo estado e por parte da população, causar revolta em outra parte, que a considera injusta e digna de protesto e resistência, qual a morte de Pôncio Pilatos causou no mito. Assim somos capazes de ver como, não só aspectos explícitos se referem ao mito, como os aspectos implícitos demonstram uma reatualização dele.
A conclusão dessa análise é que a literatura marginal, apesar de pouco prestigiada por público, mercado e, muitas vezes, crítica, por se tratar, muitas vezes, de textos a respeito de minorias sociais, de textos escritos por pessoas pertencentes a minorias sociais ou ambas as características, o que muitas vezes resulta em dificuldades no acesso e exercício da literatura, não apenas sobrevive, mas tem uma produção rica.
Essa produção se demonstra possuidora de diversas ferramentas, e plenamente capaz de, de forma hábil, concreta e profunda reatualizar mitos, sem abandonar sua temática urbana e periférica.

Bibliografia

BÍBLIA, Português. A Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição rev. e atualizada no Brasil. Brasília: Sociedade Bíblia do Brasil, 1969.

MARGINAL, Coletivo Poesia. Mais um. coletivopoesiamarginal.blogspot.com.br. 11 dez. 2016. Disponível em: <http://coletivopoesiamarginal.blogspot.com.br/2016/12/mais-um.html>. Acesso em: 19 dez. 2016.

PEÇANHA, Érica. Literatura Marginal: os escritores da periferia entram em cena. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, 2006. 

TELLES, Luis Fernando Prado. Os desafios da leitura numa aula de literatura: entre a história, o mito e a ficção. Remate de Males. (34.2). Campinas-SP, Jul./Dez. 2014. (p.531-547)

Anexo

Mais Um

  A água vaza do bueiro. É madrugada e, na noite silenciada a vida segue. Qual a água, do jeito que dá, por onde encontra caminho. Dá para ouvir os murmúrios, a TV ligada alertando sobre como economizar água, e a água vaza da boca de lobo. Ninguém reclama, não hoje. 'Tá lavando a rua do sangue. Sangue que não vazou do corpo do adolescente executado, jorrou. "O pescoço dele parecia um chafariz, vey", Dona Ana ouviu antes de dormir, depois de ouvir muita coisa. Primeiro os tiros, pelo menos cinco. Pra ter certeza que o arquivo tava queimado igual os becks vendidos pro seu assassino, que no outro dia ia dizer "Ele procurou", Pôncio Pilatos moderno, lavando a mão, em sangue, pra não perder o costume.
            Depois veio a zoada, a revolta. Dona Ana já participou, mas não tem mais saúde pra isso. Ficou rezando, torcendo pro filho morto não ser o seu, pro ônibus queimado não ser o que precisaria pegar daqui seis horas para ir pro trabalho e rezando por perdão, para seu coração, agora egoísta. É que se não for explode de dor, justificava. Ela queria sair dali. Um local melhor. Dona Ana precisava vazar. Dona Ana precisava que o moleque jorrando não fosse seu, que o ônibus queimando não fosse seu.
            Dona Ana rezava e a noite seguia, silenciada, mas não silenciosa. Gritaria, estouros. Coração batendo rápido demais. O céu coberto da fumaça. Pneus, ônibus, mas bem podiam ser corpos, tão podre era o cheiro. Tão podre era a fumaça, tão densa. Parecia que nunca mais ia sumir. Cada cochilo um pesadelo. Era a condenação que sofria sempre que matavam alguém. A condenação que sofria sempre. No horário, o ônibus de dona Ana passou. Não que ela estivesse no ponto. Uns minutos depois, a porta do barraco seria aberta. Mais um desejo atendido, o moleque morto afinal não era o dela. Só faltava um desejo, o perdão. Mas esse não podia ser consentido. Dona Ana estava errada ao dizer que tinha um coração egoísta, ainda que certa ao dizer que se não fosse o coração explodiria de dor. Fazia horas que Dona Ana não ouvia mais a água vazando na rua, nem tinha pesadelos. Dona Ana não podia mais pegar seu ônibus, nem consolar seu filho da dor de perder a mãe.

11 comentários:

  1. Alô! Não vou negar que o assunto "literatura marginal" é um muito pouco discutido e sobre o qual tenho pouquíssimo conhecimento, portanto, fico um pouco fora de lugar na hora de comentar sobre. Acontece que achei o seu texto incrível, de alto nível e muito bem explicado. Fico feliz que tenha utilizado esse tema como base para um estudo tão legal e agora, apesar de ter mais dúvidas, me sinto menos inclinada a me calar e mais a perguntar. Parabéns mesmo pelo trabalho incrível e continue a fazê-lo para que nós, leigos, tenhamos onde nos basear. Abraços!

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  2. Oi, não tenho muita intimidade com a "literatura marginal", mas achei esse conto muito interessante, a analise que foi feita do conto traçando paralelos com a historia de Jesus, deu para mim um sentido mais profundo ao conto. Excelente post, parabéns!

    www.livrosemretalhos.com.br

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  3. Que conto maravilhoso foi esse, Vitor?! Extremamente conciso, mas muito longe de ser pobre. Expressivo, mas não achei nada marginal, rs; é uma realidade central na vida de milhares, quem sabe até milhões, de brasileiros, assim como o sertão nordestino. Ultimamente, ser marginal no Brasil tem sido ser bacana.

    Devorei também a tese que precedeu o conto. Li todo e gostei.

    Mas uma vez, surpreendendo esse aluno relapso, mas com muita sede de se expressar.

    Abraço.

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  4. É engraçado isso de que o novo não tem lugar quando surge, mas com o passar do tempo, notamos o quão necessário ele foi na época em que surgiu e nos tempos depois de sua origem.
    É triste inúmeros artistas não terem espaço ao sol por coisas bestas como sexo, condição social, cor da pele, opção sexual e etc.
    Minha mãe é professora de português, e sempre que conversamos sobre livros ou pesquisas para ela fazer com os alunos, sugiro algo desconhecido pela mídia em geral, esses escritores maravilhosos espalhados pelo universo da internet.

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  5. Olá,

    O tema que você abordou é realmente muito pouco abordado em nossa sociedade. A "Literatura Narginal", como você citou, não é tão bem vista, pois as pessoas possuem a mania de rejeitar o novo por simplesmente ter medo do que pode encontrar. Creio que houve uma pequena confusão ao você intitular "Tese de mestrado", pois no mestrado realizamos uma "dissertação". Mas, quanto a Dissertação citada, ela tem um conteúdo muito bem coeso e que foi bem explorado, expondo de forma clara os argumentos e citações de outrem. Para finalizar, o conto que fechou todos os seus questionamentos, nos permite uma bela reflexão. Em suma, Parabéns! Ótimo tema!

    Beijos!

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  6. Literatura Marginal, ta aí um tema da qual nunca tinha ouvido falar, e olha que sigo e acompanho blogs literários a quase quatro anos. Isso prova que não importa o quanto você ache que domine o assunto, sempre aparecerá algo que você não conhecia. E isso me fez pensar, por que depois de tanto tempo, eu nunca achei algo desse gênero? Fui dar uma pesquisada aqui, e to achando bem interessante. Parabéns pelo post e por me mostrar algo que nem é tão novo assim, é algo do qual a gente vive, mas que nem percebe.

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  7. Olá Vitor, assim com o Rob, não vejo como "marginal" já que faz parte da realidade. Mas dito "marginal", talvez por contar dessa "realidade" de forma literária fugindo assim, dos padrões considerados "normais". Como é viva a diferença de um texto assim para um texto que fale sobre outros assuntos, já percebeu o quão denso são os textos que abordam assuntos que fazem parte das margens da sociedade? Muitos não são romanceados, são criticas travestidas de "atos" românticos. Mas acredito sim que esse tipo de texto devesse propagar por aí de forma inteligente como você dissertou. Parabéns.
    Abraços,
    Uiara Melo.

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  8. Eu achei muito boa a primícia do blog e gostei muito. Nunca tinha visto antes, mas achei muito interessante o estilo. Diferente.
    Beijos!

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  9. Oii Vitor, tudo bem?

    Sempre tento ler coisas novas e diferentes, mas nunca me deparei com uma obra intitulada com o gênero de "literatura marginal". As poucas vezes que vi algo próximo foi uma pincelada dentro de um romance de forma abstrata. Acredito que com o tempo será aceito, infelizmente a nossa sociedade não aceita coisas novas e normais com tanta facilidade, pois deviam... Parabéns pelo o texto e o seu ponto de vista.

    Beijos

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  10. Olá!
    Eu também nunca tinha lido referente a essa literatura marginal que você citou em seu texto. Já amei e quero ler novos textos referentes a ela.
    Adoro sua escrita .

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