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NAFTALINA



By  Coletivo Poesia Marginal     07:46:00    Marcadores: 

       Não me deixe aqui na porta, querida. Você sabia que está frio? Abra a porta e me deixe entrar, eu nem me importo de ver seu novo namoradinho de cuecas. É seu chefe? É o carinha que mora na esquina que sempre te olhou com vontade de prová-la? Não, desculpa, não vou perguntar essas coisas – é indelicado. Está frio, sabia? Sabia que nessa porra de país resolveu voltar a ter inverno? Desses invernos rigorosos que as pessoas usam as roupas cheirando a naftalina, mofo e sabão em pó de segunda marca?  Não se incomode, mas vou acender um cigarro, só pra ver se esquenta... Aliás, você nunca gostou que eu fumasse, mas porra, o que eu ia fazer quando você começava a falar da vida das suas colegas de trabalho que reclamavam do pau mole dos maridos barrigudos? Não me interessava, nunca interessou. Comecei a fumar pela distração, hoje é vício. Hoje é mais vicioso que você em mim, acho. Ou não.
       Você tá em casa? Custa abrir a porra da porta e me deixar entrar para que eu não sofra uma porra de uma hipotermia? Deixa de ser mesquinha, é inverno, to sem casaco, dignidade, vida e sonhos. Sem você. Olha que bonito, ainda sei fazer gradações, você sabe que quando eu tinha sonho de publicar meu livro de contos as metia em tudo quando é lugar. Mas não tive sucesso com os contos, mudei pras crônicas, todavia soaria falso com a vida de merda que levava – foder umas três vezes com você (uma por telefone); fazer um café só pelo clichê que todo escritor precisa gostar de café, vestir uma roupa pra arrumadeira entrar em casa, escrever duas páginas de um conto inacabado e não gostar de nada, ir ao cinema, foder mais uma vez e dormir. Uma vida de merda, naturalmente. Uma vida de escritor.
       Não é o inverno sua estação favorita? Acho que é sim, desde que seu pai comprou a prestação uma passagem pra Bariloche pra você e sua melhor amiga passarem as férias de final de ano lá. Férias em Bariloche, que se foda, nunca liguei pra a Argentina mesmo, aliás, da Argentina só salvo a Evita – dá vontade de comer. Tenho queda por loiras metidas a aristocráticas, vai ver foi por isso que me apaixonei por você.
       Ah, não pense que eu vou me matar por sua causa: não me daria ao trabalho. Já disse tudo que poderia dizer, pedi perdão, disse que mudaria, prometi até cortar os cabelos e a barba, mas parece que você prefere dormir sozinha nesse leito frio que é a sua cama. Eu poderia esquentar seus pés gelados a noite, sabe bem. Eu poderia encurralar seu corpo contra a parede com força, só de meias e sexo selvagem enquanto você nem liga se os vizinhos vão te ouvir gemer. Você nunca ligou pra isso. Na verdade deveria ligar, pois sua educação em colégio católico não permite esse tipo de escândalo. Aliás, o que sua finada mãe diria de mim mesmo? Um pedaço da escória da sociedade? Um escritor metido a rockstar falido e indecente? Um imoral comedor de menininhas em idade púbere e leitor assíduo de revistas de esquerda? E nem sei se posso negar nenhuma dessas indagações, afinal não foi dentro do seu colégio católico que nós transamos pela primeira vez? Você tinha mais que quinze naquela época? Não responda me sentiria chocado com o tempo que já se passou. Foram quantos anos de quase-casamento? Foram quantos anos me aturando e se aturando por me aturar mesmo? Foi antes ou depois de você começar a fotografar e se tornar essa artista admirada por hipsters pseudo-cults? Foi antes ou depois desse inverno me consumir? Há muito não sei responder.
       Se for pra falar do passado vou dizer que sempre senti uma atração pelo seu rosto anguloso; nobre. A primeira vez que a vi saindo da escola não foram seus seios diminutos ou pernas longas cobertas por meias brancas que despertaram-me de imediato. Foi seu rosto de mulher em corpo de menina. Rosto de uma rainha trágica qualquer. Rosto de inverno: poderoso, marcante e impassível. Inefável, até. Naqueles poucos segundos que seu olhar cruzou com o meu tão desgranhado, percorreu um arrepio na minha espinha, igual a esses que percorrem agora, como se o mundo quisesse me ter congelado só para dominar-me. Como você me domina com a frieza em todos os seus detalhes – com todos esses seus invernos rindo-se de mim.
       Mas vai abrir a porta ou não? Se não vai diz logo, por favor. O cigarro não ajuda muito contra o inverno, é como fazer uma fogueira na mais gélida das terras invernais – é ainda amá-la e saber que não é mais correspondido. Não funciona, por mais que a gente tente e queira e peça a um deus qualquer não há resposta, afinal essa coisa toda de fé pra mim sempre foi via de mão única. Peço e tenho o que como resposta? Sua porta trancada na noite mais fria desse inverno; sua porta que nega se abrir e me salvar do gelo das minhas próprias palavras ácidas – sua porta que permanece fechada e só me faz grão de neve nessa avalanche da sua falta de amor. Na minha falta de amor próprio.
       Então me deixe aqui na porta, querida. No fim eu gosto do frio, já que tenho que sentir saudade, carência, tristeza, depressão, ciúmes e inveja sentir frio é o menor dos sentimentos. E não venha me falar que frio não é sentimento – você não entende deles. Frio é como um amor não mais correspondido: só é bom dentro de casa, sem a humilhação do rastejar por caminhos já percorridos. Frio é como perder-se no seu olhar, mesmo sabendo que por lá já habitou.
       Frio maior é a porra do seu amor que se perdeu do meu.
     Frio é ir embora tendo a certeza que sua porta nunca abrigará esse inverno em minh’alma outra vez.


22 comentários:

  1. Um belo texto,apesar dos palavrões. Acho que eu também não abriria está porta não, rs.
    Ah, e parabéns! Os méritos são todos seus.

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    1. Sim, o Lucas é excelente. Eu, particularmente, diria que é um belo texto pelos palavrões, em parte.

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  2. Nossa, que texto maravilhoso.
    Nesse comentário aí de cima, acho que os palavrões deram uma maior entonação e emoção ao texto.
    Enfim, parabéns!
    Beijos!
    vaiumspoilerai.blogspot.com

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  3. Adorei o post e percebia toda a raiva e o descontentamento que ele tenta trazer aos leitores! Parabens!

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  4. Cara... Melhor conto que já li até hoje, melhor mesmo. Incluindo todos os meus que gosto bastante, sua história conseguiu me prender do início ao fim e até previu ações e pensamentos que eu teria ao lê-la. Gostei demais, sem dúvida o melhor conto que li até hoje, eu só te aconselharia se me permites, reduzir um pouco os palavrões.

    www.franklinsousa.com.br

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    1. Encaminharei seu conselho ao Lucas, e fico muito feliz mesmo que tenha gostado tanto!

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  5. No inicio eu ri bastante (ri mesmo). Achei que seria um conto engraçado, de humor. Mas no decorrer do texto percebi muito sentimento, muita raiva e ao mesmo tempo saudade. Senti um ar de vivencia pessoal do protagonista. Foi um história que me prendeu no inicio ao fim, não me distrai em parte alguma.
    Eu gostei, parabéns.

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    1. Que observação curiosa a sua, eu jamais tinha lido esse texto e pensado que poderia ser de humor (:
      No mais, em nome do Lucas, muito obrigado!

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  6. Sei que não era suposto sentir isto mas parece que me apanhou num dia em que estou enraivecida com os homens, então me coloquei do outro lado, não de quem narrava, mas de quem não abria essa porta, seja ela porta mesmo ou seja ela metafórica... E senti raiva deste homem, de tão insistente, talvez por nunca ter encontrado, eu, ninguém que insistisse por amor. De qualquer forma, parabéns! Passa todo o sentimento ;)

    Pseudo Psicologia Barata

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    1. Acredito que o Eu lírico, até pela raiva, demonstra muitos dos seus defeitos, o que pode fazer o leitor tomar o lado de quem está dentro da porta. No meu ver, isso engrandece o texto.

      No mais, em nome do Lucas, muito obrigado!

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  7. Gostei do texto. Fala do amor como um sentimento de fracasso, embora não concorde mas vivencie.

    A ficção é mesmo maravilhosa. Nos permite cada que façamos cada confissão e passarmos impune que até Deus duvidaria, rs.

    Abraço.

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    1. Fico feliz que tenha gostado!

      "A ficção é mesmo maravilhosa. Nos permite cada que façamos cada confissão e passarmos impune que até Deus duvidaria, rs."

      Ai é você quem está dizendo :p

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  8. A única palavra que pode me descrever agora: NOSSA! Adorei esse texto e o achei bem real.
    Parabéns pelo blog e espero que você tenha muito sucesso!
    www.resenhasdelivros.com

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    1. Ficamos muito felizes com o comentário, e em nome do Lucas, muito obrigado <3

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  9. Lendo o texto consegui me imaginar na história. Em pleno verão fui transportada para um dia gélido e sôfrego. Estou sem palavras...
    A descrição do ambiente, a emoção, tudo. Tudo impecável!
    Parabéns!

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  10. Este comentário foi removido pelo autor.

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  11. Olá! Como vai?
    Minhas mãos estão coçando para escrever uma resposta à esse texto; as palavras simplesmente flutuam aqui na cabeça. Se eu o fizer, farei questão de encaminhar. Agora: Meus parabéns pelo texto. Vivi com o eu lírico cada sentimento! Quase tremi (de frio? de raiva? Sabe-se lá). Incrível. ps: eu adoro textos com palavrões.

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  12. Olá pessoal, é o Lucas aqui, autor do conto e que participa do Coletivo. E nossa, fiquei extremamente feliz com os comentários que li aqui, aqueceram esse coraçãozinho cinza e in(f/v)ernal que eu tenho, oh. Só tenho a agradecer a todos pelos comentários, críticas, elogios e afins. Naftalina é um conto que gosto muito mesmo, tenho projetos maiores com ele, mas nada elaborado desde quando escrevi, enfim, é isso, valeu mesmo mesmo por cada um que tirou um tempo pra comentar aqui <3

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  13. Mas,gente! Q lindo! Apaixonei!!! Mt lindo!N se importe de ser o escritor rockstar...kkkk

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